O Ministério Público de Contas do Espírito Santo (MPC-ES) encaminhou ao Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCE-ES) proposta de fiscalização para o Plano Anual de Controle Externo (Pace) de 2025 direcionada à avaliação da eficiência, eficácia e efetividade da atuação dos órgãos ambientais estaduais no cumprimento dos Termos de Compromisso Ambiental (TCAs) 35 e 36/2018, firmados com as empresas Vale S.A. e ArcelorMittal Tubarão, em razão do agravamento da crise do “pó preto” na Grande Vitória.
A proposta tem como foco de atuação a “aferição da atuação dos órgãos ambientais estaduais na fiscalização do cumprimento dos TCAs 35/2018 e 36/2018, com ênfase na (i) aferição da metodologia científica empregada para aferir as medições do material particulado inalável (PM 2,5 e PM 10) produzido pelas empresas signatárias e a (ii) aderência dessa metodologia às diretrizes de qualidade do ar estabelecidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS)”.
A iniciativa ministerial ainda propõe que a análise dos técnicos do TCE-ES inclua “os equipamentos responsáveis pela medição do material particulado, sua localização, quantitativo, métodos utilizados, susceptibilidade às condições atmosféricas, entre outros pontos de controle indispensáveis à coleta e à análise físico-química das amostras”.
Ela foi formalizada em ofício encaminhado à Secretaria Geral de Controle Externo (Segex) da Corte de Contas (Protocolo 16046/2024) no último dia 4 e tem como base a importância da atuação do Tribunal de Contas na promoção de um meio ambiente seguro, sadio e equilibrado.
A ação de controle externo proposta pelo MPC-ES parte dos Termos de Compromisso Ambiental firmados com a mineradora Vale S.A. (TCA 35/2018) e com a siderúrgica ArcelorMittal Brasil S.A. (TCA 36/2018) visando à redução das emissões atmosféricas que afetam negativamente a qualidade do ar na Região Metropolitana da Grande Vitória.
Para o MPC-ES, há indícios de que essas empresas não estariam cumprindo os compromissos estabelecidos nos TCAs celebrados há quase seis anos, por falta de controle e negligência por parte dos órgãos ambientais responsáveis pela gestão da qualidade do ar, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seama) e o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema).
Além disso, há sinais de que a emissão de poeira sedimentável, conhecida popularmente como “pó preto”, aumentou na Grande Vitória, superando os níveis registrados antes da assinatura dos acordos ambientais pelas empresas responsáveis, que tinham se comprometido a reduzir essa poluição.
A proposta de fiscalização do MPC-ES procura verificar se os TCAs alcançaram seu objetivo principal: reduzir significativamente – ou, de forma ideal, eliminar por completo – a poluição atmosférica gerada pelas empresas Vale S.A. e ArcelorMittal Tubarão na Grande Vitória.
JUSTIFICATIVAS
Segundo dados analisados pela Organização Não Governamental (ONG) Juntos SOS ES Ambiental, entre novembro de 2022 a novembro de 2023, algumas estações da Rede de Monitoramento da Qualidade do Ar (RAMQAr) da Grande Vitória registraram aumento de mais de 1.000% da poluição por “pó preto”.
O lançamento direto e diário de poluentes (gases e partículas) no ar capixaba pelas empresas Vale S.A. e ArcelorMittal Brasil S.A pode ser visto a olho nu há décadas, e diversas notícias recentes evidenciam que a quantidade de “pó preto” não está diminuindo, o que confirma a hipótese de ineficácia dos TCAs.
Conforme destaca o MPC-ES, a possível ausência de monitoramento, por parte dos gestores responsáveis pela qualidade do ar e pelo licenciamento ambiental no Estado do Espírito Santo, quanto à efetiva redução das emissões de pó preto levaram o Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES) e o Ministério Público Federal (MPF) a emitir a Notificação Recomendatória 02/2023 em conjunto, em 22 de março de 2023.
No documento, a 12ª Promotoria de Justiça Cível de Vitória também revelou que “segue recebendo reclamações de moradores da Região Metropolitana de Vitória, conforme GAMPES nº 2023.0004.8004-20, referente ao aumento do ‘pó preto’ em suas residências, sem haver uma resposta efetiva dos órgãos responsáveis pela gestão da qualidade do ar acerca da questão”.
MAQUIAGEM VERDE
Outro questionamento trazido pelo MPC-ES na proposta de fiscalização é se esses TCAs firmados pelas grandes empresas estão sendo utilizados de forma enganosa, como uma estratégia de greenwashing, expressão em inglês que pode ser traduzida como “lavagem verde”, “banho verde” ou “maquiagem verde”.
Esse termo é usado para descrever prática em que empresas ou organizações se utilizam de técnicas de marketing e de relações públicas para criar uma imagem positiva diante do público, visando transmitir a ideia de que são ecologicamente corretas, seus produtos são sustentáveis ou que estão fazendo mais pelo meio ambiente do que realmente estão.
O greenwashing também pode indicar a injustificada apropriação de virtudes ambientalistas por parte de organizações ou pessoas a partir do uso dessas técnicas, usando situações que já se apresentam devidamente computadas como meras despesas operacionais dos empreendimentos, normalmente custeadas pela própria sociedade por meio de generosos pacotes de benefícios fiscais concedidos pelos diferentes níveis de governo, como se fossem ações ambientais de iniciativa delas.
O objetivo principal, nesses casos, seria ocultar ou desviar a atenção de impactos ambientais negativos por elas gerados. Um exemplo seria a Feira do Verde, tradicional evento de educação ambiental do Espírito Santo, promovido anualmente pela Prefeitura de Vitória e cancelado em 2015, após 25 anos de realização ininterrupta, devido à tragédia ambiental ocasionada pelo rompimento da barragem de rejeitos de mineração, em 5 de novembro de 2015, em Mariana, Minas Gerais.
A barragem era controlada pela Samarco Mineração S.A., um empreendimento conjunto da mineradora e petrolífera anglo-australiana BHP e da mineradora brasileira Vale S.A., paradoxalmente patrocinadora habitual do evento de educação ambiental Feira do Verde, cujo tema, na edição anterior de 2014 versou justamente sobre “Educação ambiental: contribuindo para a construção de sociedades sustentáveis”.
Também nessa lógica, na visão do MPC-ES, encontram-se o Atlântica Parque, os Parques Botânico e Costeiro da Vale (ainda a ser construído), todos localizados em Jardim Camburi, bairro situado próximo às instalações das fontes de emissão do “pó preto” pela Vale e ArcelorMittal.
Outro exemplo se verificou por ocasião da participação da mineradora Vale S.A., bem como da Suzano S.A. – esta com atuação na exploração de recursos naturais (monocultura formada por imensas florestas de árvores homogêneas como eucaliptos e pinus, sem a biodiversidade das florestas naturais e da mata nativa, formando verdadeiros desertos verdes), – além de outras empresas de commodities e bancos, na chamada Conferência das Partes, a 27ª Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP 27), realizada entre 7 e 18 de novembro de 2022, no Egito. A COP 27 foi patrocinada pelo Sistema Coca-Cola, apontado como o maior poluidor mundial de plástico por cinco anos consecutivos, pelo Relatório Global de Auditoria de Marcas.
RISCOS E DIRETRIZES
Conforme consta na petição ministerial, o descumprimento dos TCAs celebrados com a Vale e a ArcelorMittal representa risco significativo para a sociedade, uma vez que a não execução desses acordos impede a redução da poluição atmosférica na Grande Vitória.
O MPC-ES destaca, ainda, a importância de uma ação firme e rigorosa por parte do TCE-ES no campo ambiental, tendo em vista os efeitos maléficos da poluição atmosférica sobre a saúde humana e, em última instância, sobre o ecossistema.
A fiscalização deverá avaliar, entre outros pontos, a metodologia científica utilizada pelos órgãos ambientais para medir as emissões do material particular inalável (pó preto), a conformidade dessas medições às diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e a efetividade das ações de controle realizadas.
A proposta agora segue para análise da Segex do Tribunal de Contas, a quem compete avaliar sua inclusão no Plano Anual de Controle Externo de 2025, considerando critérios como relevância, materialidade, risco e alinhamento com o plano estratégico do TCE-ES.
Se aprovada, a fiscalização poderá representar um passo importante no combate à poluição na Grande Vitória e no fortalecimento do controle ambiental no Estado do Espírito Santo, consolidando o papel fiscalizador da Corte de Contas no campo ambiental, no qual os desafios são crescentes.
O Pace é parte fundamental do processo de controle externo do Estado, sendo elaborado anualmente com o objetivo de planejar as fiscalizações que serão realizadas pelo Tribunal de Contas no ano seguinte.
Com essa iniciativa, o MPC-ES reafirma sua missão constitucional de zelar pela defesa da ordem jurídica e pela garantia a direitos constitucionais, especialmente o direito fundamental a um meio ambiente seguro e equilibrado – essencial à sadia qualidade de vida desta e das futuras gerações.
MEDIÇÃO ANALÓGICA EM TEMPOS DIGITAIS
O monitoramento das emissões de poluentes atmosféricos é essencial para avaliar a qualidade do ar e planejar estratégias que possam garantir da qualidade de vida da população da área monitorada.
Segundo o MPES, o trabalho de medição do “pó preto” é feito de forma analógica pela Rede de Monitoramento da Qualidade do Ar, mantida pelo Iema, e os resultados são apresentados apenas 30 dias após a coleta, o que inviabiliza a resposta rápida e efetiva quanto ao controle e à gestão da qualidade do ar.
O último Relatório Anual da Qualidade do Ar na Grande Vitória divulgado pelo Iema é de 2022 e também revela que os equipamentos que compõem a rede de monitoramento do “pó preto” na atmosfera são defasados, conforme detalhado no item que trata sobre a situação operacional do monitoramento da qualidade do ar.
“Conforme mencionado acima, a RAMQAR RGV teve suas operações iniciadas no ano de 2000. Contudo, em virtude do tempo decorrido, verificou-se a necessidade de atualização das estações devido à defasagem dos equipamentos instalados, bem como a paralisação do monitoramento de alguns poluentes dado a indisponibilidade de peças de reposição e consumíveis para tais equipamentos.” Trecho do Relatório Anual da Qualidade do Ar 2022
Ainda de acordo com o relatório de 2022, o mais recente divulgado, a atualização da Rede de Monitoramento da Qualidade do Ar é uma das exigências para que as empresas obtenham suas licenças ambientais de funcionamento.
A apresentação de proposta e de cronograma de instalação de uma Rede Automática de Monitoramento de Poeira Sedimentável, no prazo de 60 dias, estão contidas na Notificação Recomendatória 02/2023, expedida pelo MPES e MPF em março de 2023, endereçada ao diretor-presidente do Iema, Alaimar Ribeiro Rodrigues Fiuza – funcionário de carreira da Vale por mais de 30 anos, antes de assumir a função atual, em janeiro de 2019.
Contudo, até o momento, não se tem notícia de que houve modernização da tecnologia empregada no controle da qualidade do ar. Sem controle eficaz, torna-se difícil a tarefa de punir as empresas responsáveis pela poluição atmosférica excessiva.
Apesar de a ciência ser capaz de analisar remotamente a composição química de partículas encontradas no planeta Marte, as empresas poluidoras – detentoras de alta tecnologia para extração e beneficiamento do minério de ferro – ainda são incapazes de identificar e de neutralizar as próprias fontes do “pó preto” que amanhece nas varandas e é inalado pela população capixaba.
O QUE É O “PÓ PRETO”?
O “pó preto” que polui a Região Metropolitana da Grande Vitória é composto por uma mistura de partículas finas de materiais como minério de ferro, carvão e outros resíduos gerados, principalmente, pelas atividades industriais de siderurgia e mineração. Esse material é classificado como Poeira Sedimentável (PS), cuja principal característica é a capacidade de se depositar em superfícies, sujando residências e afetando a qualidade do ar, provocando inúmeros problemas à saúde da população.
A poluição atmosférica na região está ligada às operações das empresas Vale e ArcelorMittal Tubarão, que são responsáveis por grandes emissões de material particulado.
O Iema e a Seama são os órgãos ambientais responsáveis por fiscalizar e controlar essas emissões, mas suas ações não estão sendo eficazes para conter o problema.
AR PURO É UM DIREITO HUMANO
A Assembleia Geral das Nações Unidas, em resolução aprovada em 2022, declarou que um ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito humano universal. Essa decisão visa enfrentar o declínio alarmante do meio ambiente, incluindo a poluição do ar, que afeta gravemente a saúde e o bem-estar humano. Portanto, o acesso ao ar puro é parte desse direito, e a ONU encorajou os países a tomarem medidas efetivas para garantir esse direito fundamental.